Em um dos meus livros preferidos, Morte e Vida de Grandes Cidades, Jane Jacobs cunhou o termo “A Grande Praga da Monotonia” para explicar como a homogeneidade de estruturas urbanas leva ao declínio de grandes metrópoles.
O contexto, sendo um livro de urbanismo, é obviamente bastante diferente e nada tem a ver com esportes, mas a lição certamente se aplica a outras áreas da sociedade. Analisando o calendário do futebol brasileiro para 2025, divulgado pela CBF recentemente, e principalmente o debate que cercou a divulgação, não consigo deixar de pensar que o futebol nacional também sofre com uma “Grande Praga da Monotonia.” Pior ainda é constatar que a maior parte das soluções propostas e discutidas não melhora a situação, quem sabe até tornando o ambiente esportivo brasileiro pior.
A complexidade da elaboração de competições para o futebol brasileiro é enorme, e naturalmente existem diversos pontos a serem discutidos. Na tentativa de tornar esse artigo mais organizado, vou deixar os comentários sobre competições da FIFA e da CONMEBOL de lado e focar nas quatro divisões do Campeonato Brasileiro. Em meus próximos artigos, pretendo focar nos campeonatos estaduais e regionais, além da Copa do Brasil, que na minha visão precisa de mudanças drásticas para se tornar de fato uma competição democrática. Por enquanto, foquemos nas quatro divisões do futebol nacional.
Às vésperas da divulgação do calendário, o ponto que mais me preocupava era a definição do regulamento da Série C. Essa questão me incomodava principalmente após a proposta da Comissão de Clubes à CBF para transformar a competição em uma liga de pontos corridos em dois turnos, como as Séries A e B, ideia que considero péssima. Para construir meu argumento, vou discutir duas ideias principais e que julgo fundamentais para a melhoria da estrutura das nossa competições: (i) o futebol profissional brasileiro é, ou ao menos deveria ser, um funil; e (ii) times em diferentes etapas desse funil demandam calendários e competições completamente diferentes.
Começando pelo fundo do funil, os clubes da Série A representam o cenário mais complexo para a organização das datas no futebol brasileiro. Esses clubes não apenas são os únicos do país a disputar competições internacionais, mas também são os clubes normalmente com mais datas ocupadas nos torneios estaduais e nacionais, por constantemente atingirem as fases mais avançadas das competições. Além disso, ao longo da última década, vimos um aumento de vagas para clubes brasileiros na Libertadores, assim como a entrada dos clubes da Libertadores na Copa do Brasil em 2013, tornando as agendas desses clubes cada vez mais complexas.
Como resultado dessas mudanças, a Série A do Campeonato Brasileiro se mostra cada vez mais desequilibrada. De 2006 a 2010, nas cinco primeiras edições da Série A sob o modelo atual, os clubes na zona de rebaixamento somaram em média 147,8 pontos por temporada, com os valores variando entre 141 e 157 pontos somados. Como comparativo, de 2019 a 2023, esses clubes somaram uma média de 132,0 pontos, em um intervalo que variou entre 120 e 139 pontos. A conclusão é bastante clara: a primeira divisão do futebol brasileiro é cada vez mais desigual. Quando somamos essa crescente desigualdade com o aumento no número de partidas disputadas pelos principais times do país ao longo dos últimos dez anos, me parece loucura que não se discuta uma diminuição do número de equipes na Série A.
E se a primeira divisão me parece claramente inchada atualmente, as divisões inferiores apresentam o problema oposto. Considerando que os times da Série B normalmente não disputam competições internacionais e não atingem fases avançadas da Copa do Brasil, existe um número disponível de datas muito maior na segunda divisão nacional do que na primeira. Ao mesmo tempo, existe uma dificuldade em atrair atenção quando comparada à Série A, que concentra os times mais populares do país. Por óbvio, a não ser em casos específicos em que gigantes do futebol brasileiro caiam, é impossível atingir o mesmo patamar da primeira divisão, mas aumentar o interesse e a audiência da competição é perfeitamente possível. O aumento do número de participantes na Série B, dessa forma, seria importante para não apenas para aumentar a quantidade de equipes tendo acesso a um calendário mais competitivo e que ocupe a maior parte do ano, mas também para aumentar o interesse na competição.
O debate no futebol brasileiro, no entanto, não apenas não explora essas diferenças entre as diferentes divisões como também busca levar o modelo das Séries A e B para outras divisões, o que me soa absurdo. O debate mais recente nesse sentido foi com relação à mudança da Série C para um torneio com 20 times, de pontos corridos e em dois turnos, exatamente como as duas primeiras divisões nacionais. Novamente, o debate ignora completamente as diferentes demandas dos times nas diferentes divisões nacionais, buscando uma homogeneização entre as divisões que só prejudica o futebol brasileiro. Prova disso é que o novo modelo da Série C demandaria um alto aporte financeiro por parte da CBF para viabilizar a competição. Ao invés de drenar as principais divisões financeiramente para sustentar as divisões inferiores, o debate deveria estar centrado em tornar as divisões inferiores igualmente sustentáveis.
Pensando nas divisões inferiores, o Brasil apresenta uma enorme quantidade de potências regionais que podem tornar esses torneios altamente atrativos. Ainda assim, a cada Santa Cruz, Paraná Clube ou Portuguesa que não consegue uma vaga em competições nacionais, a receita proposta se torna adicionar divisões até que todas tenham seu lugar ao sol. Já perdi as contas de quantas vezes acompanhei debates sobre a criação da Série E, por exemplo. Empilhar divisões com formatos iguais transforma o que deveria ser um funil em um tubo, criando uma “Grande Praga da Monotonia” própria do futebol brasileiro. O modelo que torna a Série A atrativa é o mesmo modelo que mataria uma Série C ou D, sendo de vital importância que essas divisões inferiores se inchem e busquem formatos alternativos.
A questão, portanto, é que um punhado de potências regionais disputando uma divisão inferior não é capaz de atrair interesse suficiente para viabilizar a competição, sendo necessária uma grande quantidade delas para tornar a competição realmente atraente. Se a decisão coubesse a mim, eu teria uma Série A com 18 times, uma Série B em pontos corridos com 24 clubes e uma Série C com formato alternativo e 30 times. Não vou entrar em detalhes sobre esse formato alternativo porque o texto se tornaria extenso demais e tomaria outro foco, mas é perfeitamente possível manter a competição com uma quantidade razoável de datas e premiando as equipes mais regulares da temporada.
A Série D, considerando o formato atual com 64 clubes, é a única que me realmente me agrada, ainda que eu considere que algumas mudanças possam fazer sentido. Da Série D para baixo, o foco deveria ser em competições regionais e estaduais, as quais vou explorar em mais detalhes no próximo mês.