Coluna

Música, futebol e direitos autorais: quais os riscos e obrigações legais envolvidos na publicidade e nos estádios?

A legislação brasileira de direitos autorais traz alguns requisitos para todos que querem criar e tocar músicas, aos quais o futebol não está imune

Música, futebol e direitos autorais: quais os riscos e obrigações legais envolvidos na publicidade e nos estádios?
Foto: Getty Images

28 de setembro de 2023

7 minutos de Leitura

Ana Clara Ribeiro
Ana Clara Ribeiro
Advogada no Núcleo de Propriedade Intelectual da Baril Advogados. Escritora, pesquisadora e consultora de estratégias de Propriedade Intelectual no entretenimento

Futebol e música é uma união que costuma dar certo. Mas na hora de usar músicas em eventos, publicidade e até mesmo entre as torcidas nos estádios, nem tudo está liberado.

A legislação brasileira de direitos autorais, sintetizada na Lei n.º 9.610/98, traz alguns requisitos para todos que querem criar e tocar músicas, aos quais o futebol não está imune. 

Vamos entender quais são os principais riscos e obrigações legais envolvidos no uso de músicas em partidas de futebol (seja na torcida ou no campo) e em ações publicitárias dos clubes. 

Entenda os direitos autorais nos cantos de torcidas adaptados de outras músicas

Muitos cantos de torcida são adaptações de melodias e letras de outras músicas. Por exemplo, a canção que tem embalado a torcida botafoguense em 2023, marcada pela letra “Caiu no tapetinho, já era”, é uma adaptação do funk “Papin”, de Kevin O Chris e MC Cajá. 

Em tese, uma obra criada com uso de elementos de outra é o tipo de conduta que exigiria autorização dos autores da obra original. Mas a Lei de Direitos Autorais também determina a liberdade das paráfrases e paródias, o que muitas vezes cabe para os cantos entoados pelas torcidas.

Na paráfrase musical, mantém-se a ideia de uma obra anterior, mas ela é expressa de outra maneira, com mudanças tanto na forma quanto no conteúdo. Já a paródia, no âmbito musical, mantém a melodia ou trechos da letra original, mas com elementos novos, geralmente com o objetivo crítico ou humorístico. 

As paráfrases e paródias são permitidas pela legislação de direito autoral (desde que não se trate de uma verdadeira reprodução e nem haja descrédito à obra original) porque há interesse em não impor limitações excessivas à circulação das obras autorais e à liberdade de expressão.

Porém, o cenário muda quando o clube resolve fazer uso desses cantos de torcida também. 

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem um entendimento de que as paródias com fins comerciais, usadas na publicidade, não constituem violação de direitos autorais (REsp n.º 1.597.678/RJ, 3ª Turma, Relator: Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgamento em 21 de agosto de 2018). 

Mas na prática, quando um clube se apropria dessas canções, pode ser bastante difícil defender a conduta sob a alegação de paráfrase ou paródia. Caso não sejam provadas estas ou outras circunstâncias que afastem a violação de direito autoral, o clube pode ser responsabilizado pelo uso do canto de torcida criado a partir de outras obras.

Em julho de 2023, o Corinthians foi condenado pela violação dos direitos autorais sobre a música de Tim Maia, “Não Quero Dinheiro, Eu Só Quero Amar”, que foi usada como base para o canto “A semana inteira, fiquei esperando, pra te ver Corinthians, pra te ver jogando”. Esse canto foi utilizado pelo clube em vídeos transmitidos pela TV Globo na transmissão da final do Mundial de Clubes e também em algumas camisetas usadas pelos jogadores.

A 6ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo entendeu que nesse caso, o uso da canção constitui ofensa ao direito autoral em razão do “caráter não acessório da reprodução parcial da letra da música, pela exploração econômica por parte do réu e pela ausência de autorização dos titulares dos respectivos direitos autorais.” (Apelação Cível nº 1015929-42.2017.8.26.0008, decisão proferida em 27.07.23). 

O Corinthians foi condenado a pagamento de indenização por danos materiais, calculada a partir do proveito econômico obtido com a adaptação da obra de Tim Maia. Também houve condenação por danos morais, uma vez que a legislação brasileira assegura tanto o caráter moral quanto o caráter patrimonial dos direitos autorais.

Torcedor pode ter direitos autorais sobre música criada para o time?

Por outro lado, o hino ou canto de torcida que constitui uma criação original também pode ser protegido por direitos autorais. Sendo assim, o torcedor-compositor pode ser titular de direitos autorais sobre uma canção criada para o seu time, tendo inclusive a prerrogativa de autorizar ou não o uso dela.

É o caso da canção “Aqui tem um bando de louco, louco por ti, Corinthians”, criada pelo torcedor Antônio Veiga, e que foi utilizada em ações publicitárias do clube. Veiga, que registrou sua obra na Biblioteca Nacional em 2008 (Registro n.º 427740), acionou o time judicialmente pelo uso indevido da canção. Em 2009, eles chegaram a um acordo, conforme noticiado pelo UOL Esporte.

O registro de direito autoral não é requisito para proteção de uma obra autoral, mas costuma funcionar como uma prova de peso nesse tipo de disputa.

Naturalmente, nem sempre é fácil identificar a autoria de um canto a partir do momento em que ele se espalha e começa a ser entoado pela torcida. A titularidade dos direitos autorais tampouco significa que qualquer uso da canção vai gerar grandes rendimentos. Uma matéria de 2013 do jornal UAI conta que os herdeiros de Vicente Mota, autor do hino do Atlético Mineiro, que chegou a constar em CDs lançados pela CBS, recebem valores baixos pelos direitos autorais da canção.

Nos casos em que o clube deseja fazer uso de uma canção criada por um torcedor em conteúdos, marketing, produtos etc, é necessário obter a autorização do autor, o que geralmente se dá mediante uma remuneração. Esse costuma ser o principal tipo de renda aferível com obras autorais entoadas por torcidas de futebol, já que o Regulamento do Ecad não prevê que o canto dos torcedores nos estádios configura execução pública — ou seja, não gera dever de pagar direitos autorais.

Por exemplo, o icônico “Grito de guerra” (“Eu sou brasileiro/com muito orgulho”) teria rendido ao seu autor Nelson Biasoli apenas R$ 11.595,02 de direitos autorais entre 2006 a 2014, conforme noticiado pelo jornalista Ancelmo Gois em sua coluna de 01/07/2014 no Jornal O Globo.

Uso de músicas em eventos esportivos também requer autorização e pagamento de direitos autorais

Os hinos e cantos de torcida não são as únicas músicas tocadas em partidas de futebol e outros eventos esportivos. Também há sonorização ambiental (músicas tocadas por DJs), há performances de artistas e músicas que são tocadas como parte da própria competição. Todas estas também demandam pagamento de direitos autorais, de acordo com o Regulamento do Ecad.

A ausência de pagamento pode ensejar responsabilização civil não somente da entidade promotora do evento, mas eventualmente pode alcançar até outros envolvidos. Foi o que ocorreu na final da Copa Libertadores da América em 2019. 

A final aconteceu em Lima, Peru, e contou com performance de diversos artistas latinos, incluindo os brasileiros Gabriel O Pensador e Anitta. Mas de acordo com a Associação Peruana de Autores e Compositores (Apdayc), a Federação Peruana de Futebol não teria obtido autorização nem teria pago direitos autorais pela execução das músicas. Além disso, o Club Universitário de Deportes (dono do estádio onde ocorreu a partida) teria facilitado a infração e deixado de tomar medidas para evitá-la, segundo o Instituto Nacional de Defesa da Concorrência e da Proteção da Propriedade Intelectual do Peru (Indecopi).

A Federação e o clube foram condenados a pagar 317 135,08 sóis peruanos (cerca de R$ 418 mil) à Apdayc por violação de direitos autorais (Resolução n° 0196-2023/TPI-INDECOPI).

Vale dizer que pode haver diferenças entre as leis de direitos autorais de diversos países; mas em geral, a maioria dos países segue normas parecidas, por serem signatárias de tratados internacionais que protegem os direitos autorais.

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